Clarice era uma mulher solitária. Mesmo casada, sentia-se muito sozinha. Otávio, seu marido, trabalhava muito e parecia mesmo viver em outro planeta distante da Terra. Terra em que Clarice se recusava a pisar, quase sempre flutuando sob o que chamamos de vida real.. Isso porque ela amava os livros e amava escrever e passava seus dias em casa, luzes apagadas, velas acesas, tantos livros abertos, tantos cadernos de anotações feitos à mão. Mentia que a costura era para cozer os trapos do marido. Linhas e agulhas, secretamente, brincavam com os papéis que ela juntava para fazer caderno.
. Os dias eram todos iguais, embora seus escritos não tinham lá a qualidade que ela desejava, bastava escrever e sentir o tempo passar através das teclas. E havia o vinho, que ela tomava cada dia um pouco de cada garrafa a fim de que o marido não percebesse que ela andava bebendo em sua ausência. Ai, da mulher se fosse depender do marido para ter esse prazer.
Foi então que Otávio, romântico como nunca foi, lhe disse apenas que ela arrumasse as malas, pois os dois iriam viajar. Clarice sonhava com o mundo. Tinha fome de ver a vida acontecer. Nunca fora tão feliz. O destino pouco importava, ia deixar os muros da casa e sentir qualquer coisa nova sob os pés, qualquer sonho antigo bem na palma da mão.
Era praia. Otávio estava feliz? Pouco importava. Mas devia estar. Era um homem bonito, cheio de vida, por onde andava ele? O que pensava quando ia trabalhar e via a cidade, feia que fosse? Que fazia com a liberdade que lhe foi dada de graça? Tinha inveja dos homens? Tinha. Queria algo que não lhe seria dado nem que…, mas tudo bem, escrevia, e escrever era tocar a mais alta liberdade possível às mulheres. Até que ela conheceu o mar.
O sol preenchia os poros e iluminava o centro do centro da mulher. O que é isso? É vida. Ela não sabia. Descalçou os sapatos. A areia imediatamente ocupou todos os espaços. Quando a água a tocou nos pés, um desconhecido revirou por dentro. Começou a tirar todas as peças de roupa, sem pensar. Otávio primeiro ficou tão encabulado que, imóvel, sentiu o coração pulsar de raiva no corpo inteiro. O que era aquilo? Quem era aquela que ocupava sua casa e ele já não conhecia?
E então ouvi a taça se partir no chão.
Tudo estremeceu. Você checa para ver se não leu errado, porque sabe que não havia taça naquela cena, pensa em voltar algumas linhas, mas não, é isso mesmo, você não leu errado, de repente uma taça partiu e eu não tinha mencionado vinho. Clarice não estava no mar? Não estava. Estivera esse tempo todo em sua cadeira, de frente à máquina de escrever, tão crente na sua ilusão literária que se pensava dentro da história que escrevia.
Otávio me puxou pelos cabelos. Nada mais é suave, eu não sou mais como ele pensa. Ele grita e me joga no chão e eu nada sinto. Sinto falta da areia e do calor na cerâmica. Reparo na taça, a bebida avermelhada, esparramada. Pequenos pedaços de cristal perfuram meu braço, lembro do gosto do sol entrando, da promessa de liberdade.
Meu marido se debate, anda para lá e para cá, as mãos na cabeça, tedioso como costumava ser. Pego o que sobrou da taça enquanto ele reclama e questiona quem eu penso que sou, absorto ainda e como sempre nas suas próprias ideias. Se ele ao menos quisesse saber quem eu sou, se me perguntasse, se me deixasse ser. Não deixará. É por isso que farei o vinho se misturar ao sangue. Talvez seja esse o gosto da liberdade.