Elogiaram minha tatuagem. Minha linha que vai do coração à mão. Expliquei “é que eu sou escritora”, mas meu rosto reagiu levantando a sobrancelha e fazendo um bico. Isso fala do desdém que tive pela frase. Sou escritora ainda? Posso ser uma escritora que não escreve? Depois de tantos anos me convencendo de que eu devia dizer em voz alta essas palavras desejadas e temidas, agora eu falo automaticamente, mesmo que isso aqui seja meu primeiro parágrafo em meses. Um ano?
Subi para o meu quarto pensando nas minhas tatuagens, o projeto de livro de poesia que eu estava fazendo do meu corpo, e todas elas têm a ver com essa coisa que eu decidi abandonar. Tenho uma tatuagem que diz: a poesia fez folia em minha vida. Olhei para ela e os pensamentos vieram em formato de texto, esse que vou escrever agora. Pensei “rá! Não teve folia nenhuma!” Cuidado com a tatuagem que você escolhe fazer. Quando eu escolhi essa frase eu não me dei conta do contexto de onde a conhecia.
“Tudo era apenas uma brincadeira e de repente eu me vi assim: completamente seu”. E assim comecei minha vida com a escrita. Eu comecei a escrever para um blog, eu fui convidada para coletâneas, eu consegui que uma editora publicasse meu primeiro livro, eu comecei a dar oficinas de escrita, eu fui para a internet e quando vi minha vida girava em torno disso. “Foi quando a minha voz se fez mais forte, mais sentida, a poesia fez folia em minha vida”. Eu fui feliz escrevendo, com as pessoas acompanhando a minha dor, meu próximo poema, meu próximo projeto que eu dedicava tudo que podia e tinha o mínimo retorno. Se eu buscava afeto, eu tive. Tive algum reconhecimento. Teve movimento. Teve voz se fazendo forte. Teve folia? Eu era triste para escrever, eu era triste com vendas, eu era triste com o resultado das vendas e eu continuava firme na ilusão de que porque eu era uma apaixonada por palavra, a palavra me daria tudo. Eu fui tão longe que perdi minha palavra, perdi as palavras e por fim o que restou? Essas palavras.
Eu fiquei muito magoada com o que fiz, por acreditar. Mas ainda tinham (e têm) as pessoas que se fazem na vida com as palavras. Tem muito escritor bom e ruim fazendo muito sucesso. Por que ali floresce o que não floresce em mim, pra mim? “Você veio me falar dessa paixão inesperada por outra pessoa”. Eu fiquei vendo as pessoas indo e eu parada. Eu perdi tudo, era tudo aflição. Onde estavam as cores? A folia? A poesia? Está com outra pessoa. Outras. Tantas. O que elas sabem que eu não sei? O que elas têm que eu não tenho? Por que meu pensamento não alcança, não chega, não vai? Por que eu sou apaixonada por isso aqui se isso não vai a lugar nenhum? Poesia é coisa de ficar parada? Guardada? Eu tatuei em mim uma coisa diferente. Eu escrevi em mim uma música sobre saudade, uma música sobre sonhos. E eu ainda tenho um em minhas mãos. A esperança é um dom que eu tenho em mim. Afinal eu ainda resolvo minhas dores de escritora escrevendo.
Volta e meia me pergunto isso de novo. Por que? Já inventei tanta resposta. Primeiro escrevia porque não gostava de falar e tinha nisso um refúgio, um subterfúgio, recurso único para me expressar. Depois escrevi para me conhecer, depois para amá-la, depois para me curar. Hoje em dia penso que escrevo porque as palavras me pedem: "transvejo a vida enquanto a palavra se apaixona por mim e o mundo cresce".
Eu não tenho controle, esses dias aqui Gisele disse "estaladiço" para falar do pastel de Belém depois de requentado e essa palavra ecoou tão forte. Ela me segurou nos ombros e ficou pedindo para ser anotada (como se eu fosse esquecê-la), relida, revista, ressignificada. Estaladiço, estaladiço, estaladiço. Eu me apaixonei pela palavra. Eu não sei ainda que texto vou construir ao redor dela, mas ela tá aqui pesando nos ombros desde então, aguardando o mundo crescer por causa dela.
Isso aqui é meu processo criativo, tatuei meu processo. Transver é ver com outros olhos, "olhos do coração", você talvez diria, mas eu não. Por que não os olhos dos dedos? Do calcanhar, dos cotovelos? Do próprio pelo? Coração também se acostuma a ver sempre as mesmas coisas.
Quando a palavra se apaixona, então posso inventar outros significados. Eu me apaixono por ela. E é assim que o mundo cresce. Não o mundo esse mundo. O mundo nosso, meu e dela. É como se com os dedos se arrastando no papel dêssemos um zoom e toda pequenez das coisas se agigantassem.
É nessa hora que te chamamos. Você aí mesmo, quem me lê. Te convidamos para um mergulho nesse instante curto que criamos escrevendo e torcemos para que ele tome algum vazio de ti.
“Mas o que as pessoas vão pensar?”
Você já repetiu essa frase pelo menos uma vez na vida. E com “uma vez” eu estou sendo muito gentil. Não é raro as nossas decisões terem que passar pelo crivo dessa fabulosa instituição chamada As Pessoas.
Seja uma roupa, um corte de cabelo, um relacionamento, uma tatuagem, um emprego, uma viagem, um blog, um livro, um projeto, ficamos preocupados com o que vão pensar de nós, das nossas escolhas, dos nossos resultados.
Mas quem são essas pessoas?
Em 2016 comecei um curso de palhaçaria em Brasília. Nossa professora era muito firme e cada uma das atividades, exercícios e apresentações que ela nos propunha ali tinham como objetivo trazer nosso palhaço interior à tona. Nem preciso dizer o quanto o processo foi difícil.
No último encontro escolhemos figurino, a máscara (é como chamamos o nariz do palhaço) e fizemos apresentações de improviso. A professora estimulava a nossa imaginação e o público (os outros alunos da turma) avaliava nossa performance: riam ou não do que fazíamos ali no picadeiro.
Eu, tímida que era, quase saí correndo quando chegou a minha vez. E em um dado momento, já no picadeiro, a professora me pediu para fazer algo, acho que era cantar uma música e eu respondi que estava com vergonha.
_ Por quê?
_ Porque tenho vergonha do que as pessoas vão pensar.
_ Que pessoas?
_ Todas as pessoas.
_ Bom, aqui não estão todas as pessoas. Quem é que vai se importar com o que você está fazendo aí?
Silêncio. Quem se importava? Eu tinha vergonha de quem? Quem são as pessoas que eu tinha vergonha de cantar na frente?
_ Minha mãe. Respondi.
_ Sua mãe não está aqui, então pode cantar.
Comecei a cantar Smells like teen spirit, do Nirvana. Ela pediu para cantar em chinês, em francês, e eu cantei também. Não que eu saiba chinês ou francês, mas a Flora, nome que foi dado á minha palhaça naquele dia, não ligava nenhum pouco para isso.
Contei tudo isso para chegar em dois pontos:
Até hoje eu estudo e reflito sobre como a minha família se comportou comigo e como eu interpretei esses comportamentos acabaram me tornando uma pessoa tímida durante muitos anos. Eu era uma criança obediente, quieta, “boazinha”. Sair desse papel me causava estranheza, então eu pensava “o que as pessoas vão pensar?”. Provavelmente um pensamento que me acompanha desde pequena para não fugir muito da ideia que eu tinha de que para ser amada deveria agradar. Um rasgo enorme na minha autenticidade que eu vivo para recuperar.
E o que isso tem a ver com escrita?
Muita gente ainda deixa de escrever e publicar com medo do que os outros vão pensar. Me fala, quem são as suas pessoas e como você pode encarar esse medo? É um medo real ou tem uma criança aí dentro que só quer explorar a própria criatividade? Será que agora o adulto que te poda é você mesmo?
Será que você tem bloqueio criativo?
Sempre que eu falo sobre bloqueio criativo, começo dizendo que ele é um bom amigo, pois sempre tem algo a ensinar. É claro que eu digo isso porque falo à distância, quando ele já passou, mas enquanto está comigo também me atormenta. Até que eu faça o caminho que ele propõe, eu também sofro para entendê-lo. Um exemplo disso é esse texto: já faz muito tempo que eu queria começar uma newsletter sobre escrita, mas sempre travei.
Meu jeito de lidar com isso era me convencendo de que eu nem queria tanto assim, que já tinha muita gente fazendo isso. Arrá! Me peguei acreditando no que insisto para vocês não acreditarem. Sério, não importa quanta gente tenha por aí falando, fazendo, vendendo o que você fala, faz, vende: continue. Mas sim, acreditar que o que eu precisava dizer já estava sendo dito foi a minha muleta para nunca me comprometer a fazer textão a respeito das coisas que eu penso sobre escrita.
Alguns tipos de bloqueio criativo
Embora eu quisesse muito escrever, alguns pensamentos me atrapalhavam:
Sim, todos esses bloqueios me paralisavam diante do texto. E por tempo demais! Tudo isso enquanto eu dava mentorias e criava soluções para os bloqueios criativos das minhas alunas, mas nenhuma para mim.
Os efeitos do bloqueio criativo
E os efeitos disso não foram apenas nunca ter começado, mas também:
O bloqueio criativo quer sempre nos mostrar alguma coisa, eu vivo repetindo isso. Não à toa hoje quando decidi colocar um ponto final nessa história, decidi escrever sobre o próprio. Uma das dicas que eu mais me orgulho de acreditar e espalhar por aí é: escreva sobre o bloqueio que você está passando. E hoje eu finalmente fiz isso. Resolvi abrir meu coração sobre os meus bloqueios, e talvez você identifique-se com isto.
Explore seu bloqueio criativo
Se o bloqueio criativo tem algo a mostrar, inevitavelmente isso vai aparecer no seu texto. Pergunte-se: o que me impede de escrever? E responda escrevendo. Escreva por alguns minutos e uma resposta virá, pode acreditar em mim. E você poderá confiar nela, afinal você quem respondeu, não eu, não nada externo, você. Quem sabe mais de você do que você mesmo?
Foi preciso olhar para dentro e descobrir o que estava impedindo o fluxo dos pensamentos, a coragem, a inspiração. Talvez minha primeira newsletter deveria ser sobre bloqueio criativo e por isso todo esse processo para chegar até aqui. Será que era isso que ele queria me mostrar?
O que me impedia de escrever o texto que abriria a minha newsletter? Bloqueio criativo.
Como resolvi? Escrevendo a primeira newsletter sobre bloqueio criativo.
Abraços poéticos,
Letícia de Queiroz
Newsletter: boletim informativo, e no meu caso, Sobre Escrita
Toda terça-feira, às 12h.
Eu gosto quando escrevo como se pintasse um quadro abstrato. Revelando devagar as coisas sem nome que, antes que saibamos sobre elas, sabem sobre nós. Um misto de nada e tudo. Será nada se não houver atenção, mas basta uma demora, basta descansar o olhar e derramam-se questões impossíveis de fechar. Esse rasgo, essa fresta, esse chamado que só a poesia sabe. Abre, escancara, canta.
Eu gosto quando entro tão fundo em mim, quando mexo com tamanha maestria o caldo das coisas que eu não sei, que deixa de ser sobre mim. Eu sou a única coisa que sei, mas quando revelo que não sei… é nesse lugar que você me encontra. É gostoso quando você me lê e a gente se agarra sabendo que não sabemos nada. E é na falta de si que a gente se vê, se revela, se encanta.
Vislumbrar o que não se sabe acorda os corpos.